Analfabetismo histórico
SÃO PAULO - O movimento negro, bem como outros grupos que tentam
reduzir os níveis de intolerância na sociedade, tem toda a minha
simpatia. Isso dito, é ridículo o que estão tentando fazer com
Monteiro Lobato. Se a iniciativa legal, que já chegou ao Supremo,
prosperar, o autor poderá ter parte de sua obra banida das bibliotecas
escolares.
Não há a menor dúvida de que Lobato se utiliza de expressões que hoje
soam rematadamente racistas, como o termo "macaca de carvão", para
referir-se à Tia Nastácia. A questão é que estamos falando de escritos
dos anos 30, época em que quase todo mundo era racista. E, se há um
pecado mortal na crítica literária e na análise histórica, é o de
interpretar o passado com os olhos de hoje.
"Não sou nem nunca fui favorável a promover a igualdade social e
política das raças branca e negra... há uma diferença física entre as
raças que, acredito, sempre as impedirá de viver juntas como iguais em
termos sociais e políticos. E eu, como qualquer outro homem, sou a
favor de que os brancos mantenham a posição de superioridade."
Odioso, certo? Também acho. Mas, antes de condenar o autor da frase ao
inferno da intolerância, convém registrar que ela foi proferida por
Abraham Lincoln, o presidente dos EUA que travou uma guerra civil para
libertar os negros da escravidão.
E Lincoln não é um caso isolado. Encontramos pérolas racistas em ditos
de Gandhi e Che Guevara. Shakespeare traz passagens escancaradamente
antissemitas, Eurípides era um misógino e Aristóteles defendia com
empenho a escravidão. Vamos banir toda essa gente das bibliotecas
escolares?
A verdade é que todos somos prisioneiros da mentalidade de nossa
época. Há sempre um horizonte de possibilidades morais além do qual
não conseguimos enxergar. Aplicar critérios contemporâneos para julgar
o passado é uma manifestação de analfabetismo histórico.
Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans
- O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve
na versão impressa da Página A2
Reportagem Folha de São Paulo –
http://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/1155398-analfabetismo-historico.shtml
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